Adeus em Todo Lugar e Utopia
Primeiras cinco páginas de ATL e primeiros dois capítulos de Utopia devidamente revisados para o molde que pretendo, definitivo.
Vou tentar manter essa periodicidade semanal de cinco páginas, assim não loto a caixa dos assinantes gratuitos e dos poucos apoiadores que me dão algum crédito via apoiase ou pix.
A ideia de Adeus em Todo Lugar é seguir o fluxo de pensamentos, como em outras HQs minhas que seguem essa linha de escrita e desenho. Nada novo, embora nos quadrinhos eu acho que é menos comum, embora obviamente eu não esteja achando que sou muito original por isso. O centro da ideia são os mesmo sonhos que inspiraram outros quadrinhos meus, como Depois da Queda, Vírus da Melancolia e O Inimigo, além da primeira que fiz nesse estilo, me colocando como alter ego lidando com meu doppelganger —outro tema recorrente nessas histórias —Ian Martinez e a mais recentes, Um Espelho Sem Alice. Como se pode ver, é uma obsessão mesmo, ou só incapacidade de ir além mesmo.
Bem, se quiser acompanhar, tão aí as primeiras páginas.
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Seguem as primeiras 5 páginas e os primeiros capítulos da versão em livro, revisados, de Utopia
Adeus em Todo Lugar
Utopia, prólogo e primeiros dois capítulos, revisados.
No início desse ano comecei uma História em Quadrinhos chamada Utopia, que cheguei a publicar por aqui, mas o modo como vinha criando o enredo não estava me satisfazendo e muita coisa estava virando gambiarra, pelo modo como eu vinha criando no improviso. Decidi então que a personagem de Lua ou Joe Moon, não teria desenhado um gibi inspirado no estilo noir dos gibis dos anos 30 e 40 do século XX, mas um livro mesmo, e que esse livro seria o que escrevo agora. A versão em quadrinhos, virá depois dele, com a adaptação do estilo emulando os gibis e capas de pulps do gênero, depois que todo o enredo estiver resolvido no livro, e essa versão trará um elemento a mais no enredo, que fará com que meu público de no máximo cinco pessoas boceje de felicidade.
Utopia
Dois primeiros capítulos e um prólogo
- Escrito por Vinícius da Silva Vinz e Lua de Junho -
Prólogo
Já te falei que adoro desenhar e adoro uma arte antiga chamada Histórias em Quadrinhos, e principalmente, as que se passavam na década de trinta e quarenta do século XX, do gênero que chamavam ‘policial’ ou ‘noir’, mais especificamente?
Mas, além dos quadrinhos, Lady Charles me apresentou também a literatura de mistério, os pulps e a escrita direta desse estilo. Acho que as imagens e os quadrinhos do século XX tinham esse poder, algo que o cinema 3D imersivo e tátil não é capaz com toda a sua tecnologia. Na verdade, por imitar a vida real, ele me causa menos imersão que a leitura, porque a vida ‘real’ para mim é só um lugar de onde quero poder escapar depois de terminar meu trabalho. Porém, escrever permite que eu chegue logo ao ponto que quero narrar, enquanto que desenhar quadrinhos toma mais tempo tecnicamente falando, embora, ‘as duas formas sejam complicadas, cada uma dentro das suas maneiras de se expressarem’ como diria Lady Charles.
Então, pequena, eu escrevi – e desenhei de vez em quando – esse relato que vou deixar junto de seu corpo, e espero que algum dia, você seja honrada pelos seres futuros que encontrarão a ti e ao livro impresso na mini-impressora 3D que tenho aqui comigo. É tudo o que posso fazer agora, para que nossas vidas e mortes não se percam no vazio desse tempo morto.
Não acredito em um futuro sequer próximo com seres humanos, então espero que a espécie futura seja capaz de entender o que vou contar. No fundo, eu também não acredito nisso, mas se eu duvidar tanto, eu temo que eu mesmo farei o serviço que meu colegas foram pagos para fazer, e desisto logo dessa existência, que mesmo que tenha seus bons momentos, não foi exatamente uma festa, e nem o futuro promete nada além de vazio e dor escondida, porém latente por baixo da anestesia do espetáculo que nos moldou e nos fez crer que temos alguma escolha, mas, ainda penso que se quero ter escolha, então querer é a única escolha que me é permitida e é a ela que me agarro desde sempre.
Decidi mudar o cenário para, caso descubram, nunca associem a mim e mesmo que associem, é só uma obra de ficção que alguém desenhou, nunca servirá de prova, por isso mudei também os nomes.
Joe Moon será meu pseudônimo, Lady Charles se chamará Senhor Madame, e por aí vai. Também fiz isso porque é um universo que me conforta. Estranho não? Um tempo em que pessoas como eu não teriam vez em lugar nenhum. Mas nós, humanos, somos assim.
Capítulo 1
Dê adeus ao Campo Morto.
Tinha uns catorze, quinze anos, embora parecesse mais velha, e isso logo começou a despertar o desejo dos varões jovens ou velhos daquele inferno. Meu sexo imposto era o feminino, e não agradava muito o fato de que eu partia seus dentes e narizes antes que tentassem alguma coisa. Naquele dia, foi diferente. Depois de socar uns três palhaços adolescentes de Jesus, olhei para a torre de Utopia com esperança sonhadora.
O tapa que recebi na cabeça me jogou no chão, entre aqueles que eu tinha acabado de surrar: três meninos que achavam que podiam tocar no meu corpo por ser visto como mulher e como mulher nesse lugar, eu era algo sem vontade própria, existindo apenas para saciar seus desejos miseráveis e hipócritas de impotentes desde o nascimento.
Meu pai, um dos pastores da vila evangélica dos Mensageiros da Culpa, uma favela no meio do deserto onde os mestiços que não serviam à ideia identitária da Utopia capitalista em que as identidades têm de ser identificadas dentro de um padrão a ser consumido, e as que não servem são eliminadas no lixo para reciclagem, olhava para mim com o olho carregado de um profeta cheio de ódio, mas, no fundo, o desgraçado há mais de um ano começou a me olhar do mesmo modo que os meninos que eu tinha acabado de espancar, e, enquanto ele me arrastava para dentro de casa, eu sabia o que estava por vir.
Na verdade, eu já estava preparado para isso há tempos, porque nunca fui idiota, e preparei uma maneira de me defender do desgraçado, porque eu não pretendia ser mais uma estuprada por um desses velhos canalhas ou por algum filho seboso a quem me obrigariam a casar e servir de pano de chão do arrombado de Jesus.
Quando o verme me jogou na cama e baixou as calças e veio para cima de mim, eu retirei a faca de dentro da bainha disfarçada de crucifixo no meu pescoço e enfiei diversas vezes em sua jugular. Precisa de apenas um golpe, mas quem precisava disso, era eu mesmo. Maldito! A única coisa positiva que você me deu foi o prazer de te matar e finalmente entender quem eu sou: um assassino.
Minha mãe abriu a porta nesse exato momento, e encontrou não a desgraça previsível, da qual fingiria que não viu para não apanhar do verme, mas me viu ali, banhado em sangue, o verme nojento no chão, o sangue espirrando. Eu me ergui e caminhei até ela – Fecha a porta da frente! Não queria ser mais um a tratá-la desse modo, mas ela estava em choque, e eu não podia deixar as coisas simplesmente de um modo que poderia ser o fim dela. Ela era fraca, mas não merecia ser vítima do mesmo lugar que nos massacrou.
A pobre me olhava sem falar nada. Eu tinha que conduzi-la para o caminho certo, para a razão, e sumir dali. Finalmente apareceu a oportunidade de fugir, já que o cão de guarda que impedia minha fuga estava morto e bem morto.
Mas antes, ainda na cozinha que também era onde ficava a entrada da casa, rasguei as roupas de mulher que vestia por imposição, como uma pele que não era minha, meu sangue e o dele misturados, dentro e fora de mim, e eu sabia, essa parte, sempre carregaria comigo: o seu sangue de verme e isso me fez chorar de raiva.
—Vou tirar esse sangue no banho, raspar meus cabelos e vestir as roupas dele—disse para ela, olhando em seus olhos cheios de horror e medo, os únicos sentimentos que a pobre conhecia—usarei o cavalo dele e fugirei daqui. Você sai e encontra alguém na rua, depois de uma hora, o suficiente para que possa estar bem longe. Ao voltar, finja surpresa, não vai ser difícil vendo essa cena. É sua libertação. Permanece de luto e nunca mais te obrigarão a servir um desses porcos, ou, pelo menos, não tentarão mais, e com sua idade, seus olhos não te cobiçarão mais. Adeus, mãe.
E assim fiz. No caminho, fugi dos Filhos do Islã, o que foi fácil, já que montavam lagartos gigantes, assustadores e mortais para alguém usando as próprias pernas, mas lerdos demais para um cavalo. O problema foi depois, já perto das fronteiras de Utopia e das montanhas de lixo que servem de barreira a todos que tentam entrar, quando os Templários, também em cavalos, mas bem mais descansados que o meu, me interceptaram, matando o coitado com uma flecha e me derrubando no chão.
“É um demônio! Uma mulher vestida de homem. É um deles! Vamos queimar!”
Homens vestidos como templários, imundos, esquálidos, o oposto de qualquer glamour cavalheiresco e toda essa palhaçada medievalista que também conheci lendo na biblioteca do Senhor Madame, me cercaram com seus cavalos, sedentos de violência em nome do senhor.
— Não! Eu sou como santa Joana! Usei roupas de homem para que os infiéis do Islã não me tocassem! Vim para uma missão na Terra santa!
Eles ficaram ali, os olhos arregalados e amarelados de respirar o ar tóxico, pareciam velhos, mas algo em seus rostos revelava que não tinham muito mais anos de vida do que eu. Como se reproduziam, para mim continua um mistério até hoje, e nem quero saber. Me levantei do chão e segui improvisando meu discurso. O que a vontade de viver não revela de talentos que desconhecíamos em nós, não?
— Vim para erguer um novo exército por lá, um exército que unirá forças contra todos os infiéis que cercam a cidade de Deus!
Então, os imbecis se ajoelharam diante de mim e clamaram “Glória, Santa Joana! Rogai por nós!” – e eu tive que segurar a gargalhada que insistia em sair como um vômito pela minha boca que seguia improvisando todo tipo de discurso fanático, adaptando o protestantismo neopentecostal ao catolicismo ortodoxo emulado por um bando de otários que como disse, até hoje não sei como se reproduzem, já que não vi mulher alguma durante todo o tempo em que estive entre eles. E como fediam!
— Precisarei de outro transporte, para entrar na cidade, senão, não me deixarão entrar.
— Nós te escoltaremos, minha Santa!
— E daremos a vida por ti, se for necessário!
“Que otários, porra!” – eu pensava, segurando o riso, o nojo, o vômito.
Deram-me uma armadura como a deles e um novo cavalo, e me escoltaram até a entrada de Utopia.
O mais velho entre eles, com uma pança em que caberia outro dele, segurando as rédeas do cavalo que eu montava, disse - Minha santa Joana rediviva, neste cavalo estão nossas cartas para o Papa, que deverás confiar aos soldados para que estes as entreguem diretamente à sua santidade, assim, mais rapidamente, conseguirás teu exército, ao declarares ter nosso aval – no que eu, vestindo uma armadura mais pesada do que eu mesmo, com meu corpo franzino de quinze anos, respondi segurando o riso e o pânico de ser morto ali mesmo, com uma convicção que me deixou igualmente surpreso pelo que era capaz de dissimular
- Farei tudo o que estiver ao meu alcance, nobre cavaleiro!
Saímos eu e mais dois cavaleiros paramentados como cavaleiros medievais de filmes americanos dos anos trinta do séc XX pela trilha que levava a um dos portões de Utopia, e diante dele, a primeira coisa que me fez perceber que nessa Utopia, para onde eu fosse, só encontraria o exato oposto do que ela prometia, mesmo que suas fachadas estivessem ali para emular algum sonho tolo do também já morto século que criou um falso futuro e um falso passado que nos guia e comanda como deuses de uma mitologia vazia e desprovida de espírito ou razão.
Os portões de Utopia eram como portões de um castelo medieval e sua fachada, a que dava para ver, também, só que cinco vezes mais alto e largo. Ao redor e entre as montanhas de lixo, casas feitas do mesmo lixo abrigavam mulheres, crianças, idosos e homens adultos famintos, a maioria fugida dos Filhos do Islã, barradas na entrada, mas preferindo o lixo à violência dos fanáticos, que depois descobri, eram armados e financiados pelo governo de Utopia.
Olhei ao redor. Crianças em andrajos, famintas, os olhos do desespero. Outro desespero, não o meu. Fome. Muita fome e muito medo. Mulheres com o corpo inteiro coberto, menos as velhas e as meninas. Homens com olhar humilhado. Eu não choro e não chorei, mas senti uma pontada no peito, que foi trocada por estado de alerta, quando uma voz mecânica gritou de uma das garitas no alto da muralha, depois que o templário ao lado, tocou uma corneta enferrujada.
—Quem vem lá? Fale ou se arrependa de estar aqui.
—Trazemos uma santa para falar diretamente com o papa. Pedimos que ela tenha passagem livre em seus portões.
—Somente ela pode entrar. Vocês, retornem de onde vieram.
Mais tarde, soube que o cavaleiro na guarita era uma robô usando armadura. Como tudo em Utopia é uma simulação das fantasias de quem compra a ilusão que ela fornece. Para os cavaleiros, era a ilusão de que eram guardas de uma cidade santa medieval de romances de cavalaria adaptados para o cinema blockbuster dos anos noventa do séc XX.
Os cavaleiros se foram fazendo reverência para mim. Quando comecei a ver os portões se entreabrirem, lá estavam os soldados robô, armados com lasers—armas que raramente tive em minhas mãos, já que só eles têm permissão para usá-las e é muito difícil hackear o sistema delas para não ser rastreado, mas o Senhor Madame conseguia, entre tantas outras coisas, e por algum motivo, ele tinha alguns privilégios que outros criminosos profissionais não tinham, mas disso, falo depois.
Crianças e adultos começam a se aglomerar enquanto eu começo a guiar meu cavalo para a entrada, em direção ao espaço aberto na barreira feita pelos soldados.
Ao entrar, a barreira se fechou. Um menino com no máximo cinco anos conseguiu passar, mas não teve tempo de comemorar. Seu corpinho foi dividido em dois em frações de segundo, pelo lazer do fuzil de um soldado. Nos portões, que começaram a se fechar, a revolta se alastrou e vários foram mortos e destroçados nesse intervalo.
Não aguentei dessa vez e cobri os olhos, mas não veio uma lágrima. Ao olhar para o segundo portão no caminho, um painel eletrônico com a frase “o fim já começou”
Desci do cavalo e o guiei para a entrada. Nela, uma emboscada de neonazis malditos me aguardava com uma recepção calorosa. Não tive muito tempo para reagir ou pensar. Meu cavalo fugiu. Lutei o quanto sabia, o que não era muita coisa, e desmaiei. Já me dava como morta. Que sina passar por tudo isso para morrer entrando na cidade, depois de tudo o que escapei.
—Acorde…meu nobre…Don Quixote.
O rosto andrógino me fitava. A idade incerta porém não com menos de quarenta anos. Tinha seios e cobertos por um sutiã de metal com pontas afiadas no lugar dos mamilos. Estavam cobertos pelo sangue ainda quente de alguém.
Com meu rosto inchado de tanto soco e pontapé e coberto pelo meu próprio sangue só consegui gaguejar “q-quem…?”
Era o Senhor Madame, em uma de suas múltiplas personas, mas até ali, eu não sabia. Vestia uma minissaia sobre um corpo de gigante, botas de ferro e tinha uma das mãos biônicas. Talvez as botas fossem membros biônicos também...nunca soube. Um colar de dentes humanos ornava seu pescoço. Batom vermelho sangue. Maquiagem pesada. Tatuado em todo seu corpo, a figura de Baphomet envolvendo sua pele. Porém vários símbolos se fundiam a esse sentido final, como a figura de Abraxas em seu peito. As serpentes envolvendo o caduceu de Hermes, as asas em suas costas. O sol e a lua em cada braço e solve et coagula em cada um. “Solve” - no braço esquerdo, “coagula” - no braço direito.
Assim ele se apresentou, com os cadáveres dos nazis destroçados ao redor, como se estivesse no palco de algum cabaré berlinense dos anos XX do século XX.
Me ajudou a levantar e caminhamos por uma rua ainda com aparência medieval, mas seria a última coisa com essa estética que eu veria em Utopia.
De início temi que me tocasse. Não gosto de corpos masculinos encostando em mim, nem de forma amigável, mas senhor madame era como eu, nem homem, nem mulher, nem ambos, então deixei que me ajudasse.
Você é homem? – eu disse.
E você é?
Joe Moon – respondi.
Antes de me ajudar, ele arrancou a cabeça de um nazi e a pendurou em uma corrente presa em seu cinto onde tinha vários carregadores e uma arma que só ele e seus assassinos portavam.
—Quem disse que nazis não tem uma cabeça boa? – disse, com seu humor peculiar – vai ficar ótimo no hall de meu escritório.
Olhei para ele sem saber o que dizer. De fato, aquilo não me disse nada.
Não tinha expressão no meu rosto, e é a expressão mais comum que se encontra no meu rosto, como você sabe, pequena.
—Esse é o olhar! – disse o Senhor Madame apontando para mim como se eu tivesse ganhado algum concurso de beleza.
-Olhar?- eu disse
—O olhar certo para vencer em Utopia. O olhar determinado e sem sentimentos e remorso do empreendedor. Na minha empresa, isso é fundamental.
—Acho que não entendi.
—Estou contratando você, Robin.
E nos arrastamos rumo a Utopia, embora Madame não parecesse fazer esforço algum para me carregar.
Confesso que passei a amá-lo naquele instante, e esse mesmo sentimento, só tive depois por ti, doce Iris.
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Capítulo 2
Bem-vindo à Utopia
Você conheceu todos os lados de Utopia, os melhores e os piores - mesmo sendo uma privilegiada dos média - e a culpa foi minha. Uma criança condenada por mim, uma filha da ralé. Seus pais eram lixo branco, mas você não tinha culpa, também eu não tenho, de ser filho dos Mensageiros da Culpa.
De todo modo, conhecer, não é entender, irmanzinha. Como te cuidei, muito mal, devo como irmão mais velho te dizer a história real do lugar que te destruiu e do mundo de onde vim, que não está separado dessa cidade maldita chamada Utopia. A cidade sonhada, reunindo todas as utopias, desde as reacionárias às mais inclusivas, para no fim, ser a mesma coisa de sempre: os de cima pisando nos de baixo e mil e uma teorias usando opressões passadas, para justificar as opressões presentes. Tudo mudou, para nada mudar, mas o mundo, aha! — o mundo sempre vai querer nos vomitar, mas ainda não conseguiu!
1)O Topo
No Topo vivem os mais altos funcionários assistentes dos CEOS e também os servos oficiais dos Divinos, uma pseudo aristocracia de herdeiros dos fundadores de Utopia. Era para lá que você e seus pais iriam depois de vencerem os jogos de poder dos média, que implica destruir seus concorrentes, fora das leis de Utopia, no tudo ou nada permitido aos self-made man que se dignam a esse ritual de passagem até o topo da hierarquia espetacular. Acima do topo está o verdadeiro topo, os três arranha-céus que compõem a morada dos herdeiros de sangue dos pais fundadores, e onde ninguém mais chega, a não ser seus filhos que recebem um título de aristocrata do espírito.
Bem, agora vamos olhar o andar onde você cresceu.
2)Média e depósito de sonhadores.
a)No andar dos média viviam seus pais e todos os iludidos de Utopia, alguns vieram de onde vim em outros tempos onde ainda era possível sair de baixo e com muita sorte chegar a média ou mesmo arriscar ser servo no Topo.
b)No depósito de sonhadores, que fica no centro de média, onde trabalham os fiscais das máquinas que mantém o reator de Utopia, as pessoas que fazem os trabalhos arriscados e mortais em que não se arriscam as máquinas e os assassinos de elite, como eu, que têm passe livre entre os média, as cloacas e mesmo a saída para o campo morto, mas que não podem morar nos apartamentos de luxo dos média, só circular e quem sabe, se tornar amante de algum média querendo se divertir perigosamente.
3)Cloacas de Agostinho.
O lugar onde me vi jogado quando fugi dos Campos Mortos e ultrapassei, lutando pela vida com as facções religiosas de outras crenças que não a dos meus pais evangélicos. O reino do Senhor Madame. Onde vivem os despojos escravizados que são selecionados para trabalhar no depósito de sonhadores ou deixados para morrer na miséria na criminalidade, enquanto entretém os média com a glamourização delas, através de reality shows onde as câmeras e drones conseguem chegar. Mas temos quem consiga quebrar o poder delas e criamos nossas zonas obscuras.
Achava que em Utopia me receberiam como um vencedor, como diziam as propagandas nas naves que nos sobrevoavam e nos panfletos jogados:
Venha para a terra da igualdade e da liberdade’- mas só me restou seguir lutando.
Antes falei dos Campos Mortos. Agora vou descrevê-los, pois foi de lá que eu vim.
4) Campos Mortos
Para além de Utopia, existe o resto do mundo que sobreviveu, onde ficaram os dissidentes religiosos que se recusaram a conviver com o que chamavam de pecadores degenerados. Não são melhores nem piores que os que vivem em Utopia, só mais miseráveis, mas igualmente violentos e hipócritas. O triste disso tudo, que os seus iguais brancos ou pretos retintos foram aceitos em Utopia, mesmo com o fanatismo, porque o espetáculo que mantém Utopia de pé é o verdadeiro motor que a mantém viva. O que Utopia não aceita é que o extremista seja mestiço e tenha alguma convicção, só aceitam mestiços como eu se atuarem no crime ou nas sombras, fora isso, a única voz que temos é das armas que usamos para matar.”
No caminho antes do deserto limite, onde de fato não há nada, e poucos conseguem romper seus limites, e por isso são aceitos em utopia, como ‘aqueles que nunca desistem de seus
sonhos’- ha ha ha ha ha ha! -está o território dos filhos do Islã, ou Ísis.
Apesar de a variedade étnica não branca ser parte do discurso hipócrita de Utopia, os que tentam fugir do extremismo desses lugares não são aceitos também nela, senão nos arredores do muro e na entrada da cidade chamada de ‘zona oriental’.
Novamente, agora descendentes de árabes remetem à estética mestiça, mesmo não o sendo, e como eternas vítimas de um esteriótipo, somente suas elites educadas numa visão estereotipada e rica do semita de literatura ocidental são aceitos nela. Os pobres, são vistos da mesma forma que os mestiços, como a ralé impura e sem identidade.
Já entre os Mensageiros da Culpa, o inferno é nascer mulher ou desejar outra, ou ser homem e desejar outro homem, ou mesmo nascer no sexo que não se identifica. O veredito é expulsão para o deserto, para ser morto pelos Filhos do Islã, ou pelos Templários que ficam na outra metade no caminho.
A zona templária ou católica, onde ficam os guardas externos da cidade, que acreditam piamente que Utopia é uma terra santa, ainda mais porque parte da estética católica foi adotada por suas elites, que raramente são vistas embaixo. É claro que isso se torna uma barreira a mais antes de chegar aos portões da cidade, quase ninguém escapa da sanha religiosa desses patetas, que são mantidos na idade média até nas armas para evitar transtornos e também servem de barreira inicial quando algum grupo de párias tenta a sorte nos portões de Utopia.
Enfim, aqui termino a descrição do mundo que conheço e que você só conheceu o lado falso e o lado mais perverso depois da escolha estúpida dos seus pais. Esse é o mundo que te matou, pequena.
Mas agora, vamos falar de como esse mundo me foi apresentado e de como me tornei um dos mercenários da facção de Madame, o seu Sindicato de Assassinos, sendo treinado na sua escola.
Três coisas importantes a serem descritas.
1)Escola de assassinos
Sr. Madame me treinou para ser um assassino de aluguel, como ele, embora ele liderasse um sindicato de assassinos, eu me tornei seu preferido em pouco tempo. Claro, isso despertou ciúmes em vários de seus protegidos, um deles, que se considerava seu esposo, mesmo que nunca isso tenha sido declarado. Sr. Madame, como eu, sabia que o nosso compromisso era com a morte.
Sobre usar cabeças como decoração, o Sr. Madame estava apenas me testando. Queria ver como eu reagiria. Era a forma que ele tinha de entender o que a pessoa diante dele era: pelo sarcasmo e pelo choque. Algo que com o tempo, adotei como atitude, também para mim mesmo.
Enfim, fui treinado por mais de sete anos, e mesmo nesses sete anos, só tive permissão de matar pessoas de carne osso no sétimo ano, junto de trabalhos em equipe. Foi como me formei na faculdade do crime, depois, viria a graduação. Minha graduação, pequena Íris, foi matar seus pais.
Mas antes de te contar tudo e tentar de algum modo conseguir o seu perdão, caso a crença dos meus pais ou dos templários — ou mesmo a visão gnóstica do Sr. Madame estiverem certas sobre o pós morte — eu tenho que explicar como passei de uma filha de crentes fundamentalistas para quem realmente sou: Joe Moon.
Sr. Madame foi mais que um mestre. Foi pai e mãe, foi professor e minha diva. Foi meu guia no crime, meu professor de malandragem e meu educador nas complexidades do conhecimento liberado apenas para poucos, que nem os média alcançam, já que aprendem apenas o necessário para nos pisar e humilhar aqui embaixo.
O Sr. Madame sabe que é o verdadeiro dono de Utopia. O que entendeu seu mecanismo. O amoral super-homem de Nietzsche formado na magia oculta que o trans humanizou para além do gênero, também para além do humano, embora ele se risse do aristocratismo de intelectuais que serviam aos ricos. Ele não é um aristocrata, é um chefe do crime, um poder marginal que todos temem — do nazi da sarjeta ao rico na cidade dos média. Só os senhores do topo parecem nem temê-lo, nem o subestimarem. Na balança das forças, crime e elite do topo mantém o equilíbrio meta capitalista da última torre de Babel possível, aquela que não busca aos deuses, mas o vazio do infinito indiferente.
Sim, eu me tornei guerreira e adquiri erudição com ele. Me via como seu predecessor? No fundo éramos mais uma família aparentemente disfuncional, mas que funcionava melhor do que todas as outras naquilo que o mundo exige: poder.
Todos os outros assassinos de sua ordem(assim ele chama)tiveram algo de sua própria personalidade mais oculta explorada como a força também oculta, ou aquilo que era julgado o defeito que não superavam, era o poder imanente que possuíam.
Mendigo era conhecido por se passar por morador de rua, maluco, frágil, nos seus 1,60 de altura e cabelos desgrenhados e barba de 5 anos, mas isso mudava quando o alvo o menosprezava, com indiferença ou com agressividade, sem estar na defensiva, justamente pelo desprezo que induzia, com apenas um ou dois golpes, o alvo estava finalizado. É um dos mais estoicos entre nós. Seu desinteresse para além dos detalhes que pode utilizar para sobreviver seria visto como algo animalesco, mas é justamente nesse defeito é, como ensinou nosso mestre, é que reside seu poder.
Santa é o que o codinome diz: sua força está em parecer inócua, assexuada, uma pessoa que não representa ameaça nem provoca desejo, e é, como no caso de mendigo, esse o seu fator de poder. Sua função principal é infiltrar-se em setores onde quanto menos chamar atenção é melhor. Trabalha tanto como espiã como usa esse talento como assassina. Santa tem uma vida sexual ativa, mas só seus conhecidos sabem, já que como disse, é mestra na dissimulação. As vezes usar essa contradição como método de sedução, mas é raro.
Puttana diferente de santa, usa a sedução como poder, mestra nessa arte e no sexo, não parece misturar trabalho com vida pessoal, e diferente de Santa, prefere ficar só quando não está trabalhando.
Jazzy malemolente, malandro. Sabe se virar tanto nos guetos quanto nos endereços chiques. Trafica pros playboys, pega o que eles chamam de filé, homem ou mulher. É quem sempre tem as dicas quentes para alvos ou para onde agir. Desinforma a polícia fingindo que informa tirando concorrentes do nosso caminho. Controla a produção de Paradox, a droga mais vendida entre riquinhos.
Boy é o equivalente com pênis, de Puttana. É o que mais toleramos que gostamos de verdade. Mas é útil, e no fim das contas, mataríamos uns aos outros se fosse o necessário. “O serviço bem-feito antes de tudo: profissionalismo” era assim que Madame nos ensinava fora daquilo que era sua vida pessoal, e que mostrou, não sei porque, somente a mim.
Como se esperasse até mesmo o oposto, como se visse outro rumo diferente do que ele mesmo aconselhasse. Era o que eu sentia, apesar de todos os crimes que cometi, embora não sinta remorso, porque já estávamos todos mortos, menos você que agora está de fato, mas que vive em mim como uma ferida aberta que não cicatriza nem gangrena, só sangra. Será que o Senhor Madame me via assim, antes de me colocar como alvo de seus assassinos?
O que sinto agora ainda é confuso, mesmo com tudo o que vi e sei, ainda há uma resposta faltando; justamente a resposta que fecha o quebra-cabeças dessa existência. Eu sei que as respostas estão com ele, mesmo que ele não tenha visto a parte que eu vi, ele sabe de outra coisa que ainda não sei. Essa coisa, ele soube por entendimento próprio, por sua busca incessante por entendimento. Algo que ele viu como semente em mim, mas que agora ele quer matar. Mas quem sou eu para culpá-lo? Eu também me elegi protetora sua como ele se elegeu o meu, e ambos falhamos, cada um ao seu modo. É impossível vencer na Utopia meritocrática sem ser um completo egoísta. Essa foi nossa falha: ainda amamos quando o amor se torna fraqueza num jogo cujo único fim é vencer o amor com o ódio.
2)Houve um fim, mas sobrevivemos. Sobrevivemos?
Aconteceu uma guerra, a última guerra, como em qualquer romance distópico, ou filme 2D, ou quadrinho. As profecias ocorreram não porque seus autores eram iluminados, mas porque as ficções passaram desde as crenças bíblicas, a ditar o que faríamos conosco. Elas dominaram tanto que o real se tornou menos real que as ficções que ditavam o dia a dia. Foi isso que Madame foi me contando enquanto eu me curava das feridas provocadas pelos nazi. Ele foi me contando a história de Utopia, me mostrando livros e revistas impressos em papéis, algo que eu desconhecia mesmo na vila dos mensageiros da culpa, que liam tudo em telas, apesar da miséria e da pobreza a que fomos submetidos. Eu sequer conhecia esse recurso arcaico, e aliás, mal sabia ler. Ler letras e imagens estáticas mudou minhas capacidades cognitivas para sempre, e sou grato a Madame para sempre, mesmo que agora ele esteja vindo para me matar.
Aconteceu uma guerra, a última guerra, e o que sobrou foi só a Torre de Babel chamada Utopia, que nenhum deus derrubou, e o que sobrou foi somente ela e o lixo lá fora, o que não servia, às suas margens ou sobrevivendo de forma medieval nas periferias desérticas, também como lixo reciclado. Eu sou o lixo reciclado que a invadiu, e agora ela me vomita, mas eu ainda posso entrar em suas fronteiras, e vou destruí-la junto comigo. É a única promessa que me resta cumprir, já que falhei contigo, Íris.
Aconteceu uma guerra, a última guerra, e o que restou foi só a reciclagem do último século, o século XXI, que já era reciclagem da civilização colonialista, de suas inversões, de seus roubos. Uma parte é vômito, a outra, é o vômito que é engulido de volta, que é disfarçado com sabores artificiais, com drogas, com promessas de satisfação.
Assim me narrou o Senhor Madame, e fiquei satisfeito com essa resposta até o momento crucial em que acabei sabendo o que não podia saber, e quem nem ele sabia, e por isso agora vão tentar me matar. Não porque eu represente uma ameaça real, mas porque estou fora da programação que sustenta Utopia, e saber o que sei não parece funcionar no todo, e nem como lixo sirvo, ao que parece, senão, não mandariam me matar.
3)Quem é Madame? Quem é Senhor?
Senhor madame era uma gay que trabalhava na reciclagem de lixo e se batia em brigas e encontros amorosos com gay ursos como ele, e era só isso, até o dia que encontrou o braço mecânico que usa até hoje, algo que parecia pertencer, em gerações passadas, aos androides ultra tecnológicos de Utopia. Madame não tinha o braço direito, e isso mudou quando viu que o braço mecânico ainda funcionara, que aderiu ao seu cotoco e à sua pele, e aos seus nervos e que entrou em seu cérebro, de tal modo que mudou mesmo suas capacidades cognitivas. Esse é o segredo de seu poder: a mão direita da perdição, como ele chamava, o fez enxergar muito além do que enxergava. Suas habilidades físicas e intelectuais pareciam agora infinitas. Ninguém era capaz de derrotá-lo, física e intelectualmente. Era capaz de acessar todo o conhecimento, saber o que as máquinas tinham roubado de todo o conhecimento humano. Era capaz de dominar Utopia, mas entendeu que o que a regia era uma tecnologia ainda mais poderosa, e que o melhor era encontrar um meio de não ser rastreado por ela, o que conseguiu, adquirindo o conhecimento dos melhores hackers que controlavam o crime em seu andar mais baixo, justamente onde Madame governava, e nos enviava para fazer o serviço que ele não tinha paciência ou vontade de fazer, no território dos média.
Também há outro poder inigualável. A capacidade de mudar de identidade, de sexo, de fisionomia. Claro, tudo virtualmente, para os olhos de outrem, mas é o que importa ao assassino e ao ator. O espetáculo não pode parar! Imagine o que faziam os antigos donos do mundo com uma tecnologia ainda maior do que essa? Não é a toa que destruíram tudo. Mas ainda não é o momento de contar isso. Isso que descobri por ser curioso demais. O conhecimento secreto que me condenou. Nem sempre o conhecimento é algo que melhora as coisas, não é mesmo? Pode ser o último golpe da vida. O golpe de misericórdia, já que estamos todos mortos, como te disse.